Sobre a exposição
EM SE PISANDO, TUDO DÁ! 1
Escrever sobre os trabalhos do artista visual Milton Blaser não é uma tarefa fácil, por envolver situações atuais e experiências de vida. Para ser artista na contemporaneidade é curial saber atualizar-se sempre, numa relação direta com as coisas do seu entorno. A experiência vivencial é mecanismo fundamental nesse processo.
Deleuze e Guattari sugerem que, se existe progressão na arte, é porque ela não pode viver sem criar novos perceptos, novos afetos, especialmente a construção de novas significações, a partir do desenvolvimento da figura da “experiência primeira“, além do contato direto do expectador com a obra, num diálogo com o mundo em tempo real.
Passados dois anos de paralisação e letargia no mundo por conta da pandemia, as experiências foram compartilhadas e transmitidas pelas telas de computadores, com a utilização de mídias sociais. Milton, nesse tempo de reclusão compartilhada, deparou-se com questões que afligem, desde sempre, suas memórias sobre intolerância e alteridade, ou seja, perceber o outro como uma pessoa singular e subjetiva.
O artista, que tem ascendência judaica, conhece bem as questões que envolvem a intolerância racial e religiosa. Ele se deparou com essas experiências pós-pandêmicas num simples supermercado de bairro; numa situação discriminatória, ele se sentiu frágil por não poder reagir em assuntos delicados de intolerância racial e de minorias. Foi por essa situação vivencial que Milton começou a pesquisar e usar sua criatividade, de modo a deflagrar e denunciar as atrocidades contemporâneas.
Na Exposição realizada na CASAGALERIA e oficina de arte Loly Demercian, “EM SE PISANDO TUDO DÁ “, Milton Blaser apresenta sua pesquisa baseada no antropoceno, patriarcado, masculinidade e a invisibilidade das pessoas.
Em relação ao início de toda a discriminação da cor, no trabalho “Tiranias” (2022), ele retrata a potência do patriarcado dominador. Milton traduziu essa experiência em papel Kraft, pintados nas cores brancas e pretas, com enormes pênis, servindo como estandartes de uma imensa selva de genitálias, como se a masculinidade fosse o centro do universo.
No século XVIII, em 1788, o teórico de arte Claude-Henri Watelet afirmou em seu verbete do Dictionnaire des Beaux-Arts [Dicionário de Belas Artes], que branca exprimia a luz e, consequentemente, na era do Iluminismo, a clarividência e a inteligência humanas guiadas por um desejo de perfectibilidade. Nesse período ele já utilizava a metáfora do Iluminismo como forma de evocar um conjunto de projetos e debates jurídicos, filosóficos, artísticos, científicos e literários. A associação, por um lado, entre a raça branca e o progresso racional, e, por outro lado, entre a raça negra e a ausência e privação deste – que pode ser deduzida não apenas naquela inofensiva sentença, mas, de modo geral, nos discursos estéticos do século XVIII 2 .
Segundo Anne Lafont, a produção artística e o discurso do século XVIII, produziram ferramentas de observação, permitindo que os seres humanos fossem diferenciados e também classificados implicitamente em escala moral, numa iniciativa que posteriormente redundaria em racismo explicito.
Percebemos também que, além do racismo (nas cores que o artista escolheu), há também a questão da representação do pênis na arte, deflagrando o machismo que compõe e dita normas desde os primórdios da civilização, remontando à arte Grega.
No trabalho PRENSA (2022)Milton sobrepõe pisos sobre imagens de pessoas, representando semioticamente indivíduos invisíveis, fazendo uma alusão à destruição do ecossistema e o subjacente interesse econômico. Para chamar a atenção do espectador, o artista fez um buraco no teto da galeria, que permite a visualização do céu, posto que um pedacinho dele. Vê-se, portanto, a natureza refletida no trabalho, para dar ideia de ações do homem em relação a áreas devastadas, desvios de rios e o próprio lixo que produzimos todos os dias (o entulho do teto faz parte do trabalho).
No terceiro trabalho, ANÔNIMO (2022), o artista fez dois painéis: o primeiro, retratando rostos de pessoas; o segundo, sem rostos, sugerindo a existência de indivíduos que não são olhados ou notados no sistema do poder. Como ressalta Ailton Krenak: […] o antropoceno tem um sentido incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, a ideia do que é humano. A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode ser identificada como antropoceno, devia soar como um alarme nas nossas cabeças. A grande maioria está chamando de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações e estamos jogado ao abismo. 3
- Loly Demercian
1 O nome remete a carta de Pero Vaz de Caminha sinalizando colonização e exploração da terra
“descoberta”.
2 Revista ARS42- artigo inédito de Anne Lafont, com tradução de Liliane Benetti . “Como a cor de
pele tornou-se um marcador racial: perspectivas sobre raça a partir da História da arte”
3 Krenak, Ailton . “Ideias para adiar o fim do mundo”. Companhia das letras, 2019.