Bienal da experimentação

Bienais podem ser espaços de experimentação?

O modelo das bienais encontra-se já faz algum tempo em crise, com a avassaladora força do mercado de arte pressionando seus espaços e suas escolhas. Muitas alternativas estão sendo experimentadas, como a abertura para outras áreas do conhecimento, como fez a curadora Carolyn Christov Bakargiev, na Documenta de Kassel, em 2012, ou a busca da diversidade artística, como propôs Massimiliano Gioni, no “Palazzo Inciclopedico”, da Bienal de Veneza 2013.
É nestes momentos de crise de modelos e flutuação de poderes que se abre espaço para que uma produção mais reflexiva, resultante de pesquisa acadêmica, como a do artista plástico professor da UFRGS Helio Fervenza, seja percebida, e ele convidado a participar da Bienal de São Paulo, e, depois, como um dos dois representantes do Brasil na Bienal de Veneza.
Foto: Helio Fervenza
Foto: Helio Fervenza
Os curadores da representação brasileira, Gabriel Pérez Oramas e André Severo, coordenam a ocupação do pavilhão projetado por Oscar Niemeyer, que dispõe de um amplo hall central e duas salas laterais. Cada um dos artistas convidados – Helio Fervenza e Odires Mlászho – dispõe de uma das salas laterais para colocação de obras criadas especialmente para esta mostra. No grande hall, que se conecta com elas, estão expostas as esculturas Côncavo/convexo (1946), de Bruno Munari, Unidade Tripartida (1948), de Max Bill, e Trepante/Obra Mole (1965), de Lygia Clark, além de obras dos dois artistas convidados. Essa disposição no grande hall, segundo a curadoria, recupera o diálogo antropofágico da arte produzida no Brasil com as tendências da arte consagrada nos centros hegemônicos internacionais. Tendo, neste caso, como tema a Fita de Moebius, que, retorcida e presa em suas duas pontas, coloca em questão “o dentro e o fora” que dão título à mostra.
Helio Fervenza
Helio Fervenza
Essa genealogia formal e conceitual funciona também como legitimadora dessa representação brasileira, que traz nomes pouco conhecidos do meio de arte nacional e internacional. Fervenza e Mlászho são artistas em meio de carreira ( 50 e 53 anos), residentes em regiões periféricas (Rio Grande do Sul e Paraná). Com uma sólida produção, eles, no entanto são pouco integrados ao sistema e ao mercado, Mlászho trabalha só com a galeria Vermelho, e, Fervenza com nenhuma. Segundo Fervenza, Oramas diz que ele realiza uma escrita da imagem, enquanto Mlászho produz uma imagem da escrita. A questão é que ambos deslizam nas fronteiras tênues do texto e da imagem.
Odires Mlászho
Odires Mlászho
O título da mostra, “Dentro/Fora”, cai como uma luva na prática de Fervenza, que, abordarei com mais detalhes. Tivemos uma longa e agradável conversa, na qual ele disse que, constantemente, se pergunta “O que está fora e o que está dentro da experiência de arte?”. Seu trabalho possui uma porosidade que dificulta sua classificação como obra de arte, fugindo aos padrões do expectador tradicional. Seus objetos são captados em sua cotidianidade e suspensos pela imaginação interrogativa do artista, que questiona seus códigos de interpretação. Sua proposta estética funciona como uma intersecção de signos, explorando as dimensões simbólica e conotativa dos materiais. Assim, as imagens de anzóis, coloridos e atrativos ao olhar ao mesmo tempo apontam uma sedução que conduz á captura e á morte, e suas fotos contra o céu azul remetem, também, ao azul do mar. Assim, ele estabelece uma cartografia de relações com outros usos para as topologias. Suas instalações são quase teoremas, referência que ele já assume no próprio título da obra “(peixe, sombra) dentrofora (do céu da boca) d´água ( , )”.
Foto: Helio Fervenza
Foto: Helio Fervenza
Fervenza é professor no Departamento de Artes Visuais da UFRGS, e desenvolve um trabalho de investigação, à margem dos modismos, que gostaria de destacar. Preocupado com a expansão de questões conceituais em suas práticas artísticas, ele inscreve, no espaço expositivo, verdadeiras equações enlouquecidas – com parênteses, colchetes e pontos – que alteram a significação de objetos comuns, como uma rodinha com rolimã ou uma folha de jornal. Muitos sentidos podem ser descobertos, remetendo-se a associações e também à falta delas. Seu trabalho aponta a possibilidade de um novo olhar, mais sutil e sensível, aberto ao ínfimo e à surpresa, estabelecendo processos de suspensão na visualidade trivial. Este é o caso, por exemplo, da foto de um palito que flutua no ar, que faz parte de sua instalação. Ela resultou da descoberta, real, de um palito suspenso por um fio de teia de aranha, que criava uma estranha, ambígua e absurda realidade, rapidamente incorporada pelo artista ao seu discurso poético.
Foto: Helio Fervenza
Foto: Helio Fervenza
Sua genealogia remonta aos artistas conceituais dos anos 70, que ele renova, associando aos seus conceitos operacionais uma extrema acuidade para o visual e para as contaminações que alimentam/destroem nossa sociedade. Tudo pode ser material de arte para este artista que explora o mundo com olhos de um cientista ou descobridor. Em sua proposta de “transposições do Deserto”, nas cidades de Santana do Livramento (onde nasceu e viveu sua infância), no Brasil, e de Rivera, no Uruguai, professoras falaram sobre desertos, em um mesmo dia e horário, para alunos, em escolas e idiomas trocados. Surpresas e dúvidas sobre o papel do artista e da arte inquietaram os participantes e o próprio Fervenza. O relato desta experiência é apresentado como um de seus trabalhos em um pequeno folheto de capa amarela, sem imagens.
A contemporaneidade de suas práticas se estabelece na medida em que ele aponta caminhos desdobrados e instigantes para a consolidação da atividade artística, realimentando a autonomia da estética, mas, ao mesmo tempo, abrindo-se para as inquietudes e os inesperados do mundo. Bienais que buscam outras alternativas, afastando-se do controle do mercado e do mainstream, podem ser bons lugares para este tipo de experimentação.

por Maria Amélia Bulhões.

Autora do livro Web Arte e Poéticas do Território pela Editora Zouk:

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